terça-feira, 2 de setembro de 2008

Ganden: uma escola sobrevivente no Tibete

"GANDEN, FUNDADO NO SÉCULO XV, UM MONASTÉRIO QUE ERA HABITADO POR 3 MIL MONGES E HOJE RESTANDO APENAS 300 ESTUDANTES, APONTA A ESCANDALOSA GRAVIDADE DO GENOCÍDIO CULTURAL QUE O TIBETE SOFRE. AO LONGO DESSE ÚLTIMO MEIO-SÉCULO 6 MIL MONASTÉRIOS E TEMPLOS FORAM DESTRUÍDOS, MILHÕES DE TIBETANOS OPRIMIDOS E MORTOS... TORNA-SE EVIDENTE QUE A COMUNIDADE INTERNACIONAL NÃO PODE MAIS SE CALAR!" (FMV, Escritos Esparsos, 2008, http://fmarcondesvelloso.blogspot.com)

"O assobio do vento atravessando as frestas da grande porta de madeira é interrompido pelo badalar do sino que anuncia a prece matinal. Sob uma suave neblina no pátio central do monastério de Ganden, a 45 km da capital tibetana, Lhasa, o monge Dorjee e seus 28 companheiros iniciam às 6 horas da manhã um ritual que se repete há cinco séculos. Debruçados sobre as escrituras sagradas do budismo, eles memorizam ensinamentos, meditam e rezam por tempos politicamente menos turbulentos. 'A influência dos monastérios budistas sempre foi motivo de preocupação para o governo comunista chinês', diz o monge. 'Estamos entre as poucas instituições com potencial para oferecer oposição a Pequim', completa.

As preces matinais seguem durante a manhã, até a hora do desjejum, por volta das 10. Carne de porco, arroz com vegetais cozidos e lamen (uma espécie de macarrão) chinês compõem o menu, pouco variado. Enquanto se alimenta, o jovem vê pela janela o primeiro ônibus de turistas chegar ao portão: outro ritual que se repete, embora seja um fenômeno mais recente, iniciado no ano em que Dorjee nasceu, em 1987, quando o acesso à região autônoma do Tibete foi permitido para a indústria do turismo internacional.

Eu havia chegado um pouco mais cedo, com uma van de lotação que traz os feirantes e sai de Lhasa às 6 horas. Assistia à chegada dos ônibus na crista da colina Wangkur, onde Ganden repousa majestosamente 4,5 mil m acima do nível do mar. Situado num dos únicos vales acessíveis com transporte público, na remota província de Ü, seu nome se refere ao paraíso de Maitrea.

Era meu segundo dia de visita. Havia pernoitado em uma pensão de peregrinos e já tinha um amigo local. O comunicativo monge Dorjee - e seu impressionante inglês autodidata - me ajudava a entender a dinâmica do dia-a-dia dos monges de Ganden e conversava livremente sobre política, futebol e outros temas.

Após o horário da refeição, um extenso momento de recreio traz os monges mais jovens para o terraço onde os turistas se encontram, enquanto os mais velhos repousam ou recolhem as oferendas. O pátio se transforma num campo de futebol com jogadores tímidos, agora cercados de turistas chineses. Nove dos 12 ônibus que chegaram naquela manhã eram de excursões de turismo doméstico. Ruidosos e pouco sensíveis ao ritmo de vida local, os turistas chineses invadiam as salas de aula e badalavam freneticamente os sinos dos portais de Ganden na frente de suas câmeras de vídeo. Pacientes, os monges relevam o comportamento invasivo, enquanto recolhem doações de peregrinos e cobram ingressos dos visitantes.

Ansiosos para treinar o inglês, o grupo de amigos de Dorjee se oferece para mostrar os afrescos em murais no interior dos templos. Nas pinturas estão imagens da escola de Nalanda, o maior centro de estudos da história do budismo, na Índia antiga, cuja linha de pensamento orienta o ensino de Ganden.

O monastério divide os estudantes em dois grupos: alunos de 7 a 18 anos vão para a escola fundamental, onde aprendem inglês, matemática, ciências, artes, gramática tibetana e filosofia budista. Após a cerimônia de graduação, eles prosseguem, se aprofundando em filosofia budista. Para completar os estudos das cinco grandes escrituras da universidade monástica, o jovem deverá estudar por 16 anos e passar por 13 etapas até alcançar o Geshe, o diploma equivalente ao Ph.D em filosofia budista.

No conteúdo da escritura que estudará este ano, Dorjee aprenderá sobre os elementos da natureza, o universo, o carma, a mente, o amor, a compaixão, valores humanos e vidas passadas e futuras. Sempre de acordo com a corrente de pensamento vaibashika, uma das quatro principais escolas filosóficas do budismo. Nas horas livres, o jovem costuma ocupar seu tempo com funções domésticas, futebol, jogos de tabuleiro e marcenaria, mas atualmente vive fascinado com sua câmera digital. Nada de TV ou internet. Embora alguns de seus colegas joguem videogames na cidade, ele prefere se envolver com as causas locais.

Em uma sala-refeitório, me aproximo do grupo de estudantes para uma xícara de chá de manteiga de iaque e um gole de tsampa, a tradicional bebida de cevada fermentada. O período da tarde é ocupado por aulas e encontros com os mestres. No fim do dia, o momento dedicado ao debate costuma durar pouco mais de duas horas e acontece nos jardins e pátios do monastério. 'Debatemos para nos certificar de que todos entenderam os textos da mesma forma', diz Dorjee. 'Ressaltamos os tópicos mais essenciais da escritura estudada e eliminamos as dúvidas e interpretações equivocadas dos ensinamentos', resume.

A noite cai cedo nos profundos vales do Himalaia, e os turistas se vão de volta para Lhasa assim que o Sol se põe. Às 6 horas da tarde, o jantar é servido pelos monges mais velhos e Dorjee está escalado para ajudar na arrumação da cozinha logo após a refeição. Depois de um curto descanso,ele se junta aos colegas para mais três horas de leitura, seguida de meditação e debate. O encontro noturno com os mestres segue até pouco antes da meia-noite sob a luz de grossas velas trazidas pelos peregrinos.

Em meu caminho de volta, um posto militar chinês na estrada confere os meus papéis e os documentos dos outros turistas estrangeiros que viajam no mesmo ônibus. Os passageiros tibetanos se irritam com o atraso provocado pelos soldados e, juntos, desejamos que no futuro a vida seja mais simples e relaxada para ambos - locais e turistas - em território tibetano."

Fonte: Bons Fluidos, Ed. 114, Set. 2008, reportagem de Caio Vilela, pp 88-91.